domingo, 19 de agosto de 2007

Duke Ellington desce dos céus

Aracaju, ano da graça de 2007. Noite de 18 de agosto. Teatro Tobias Barreto.

Senhoras e senhores, com vocês, a Duke Ellington Orchestra.

Não, não é um sonho em cinemascope. A cidade dos cajueiros e dos papagaios, sonolenta província à beira mar, será palco de uma apresentação memorável de jazz.

São 21 horas. Será daqui a pouco. Faltam apenas alguns minutos. O tempo escoa lentamente. Duke Ellington, ladies and gentleman. Em Aracaju.

Sem aviso prévio, um a um os músicos vão ocupando o palco com a placidez de quem vai a um culto dominical. Podia ser bem ali no Harlem. Podia ser no Mississipi. Podia estar se desenrolando num inferninho de Nova York.

Mas tudo acontece bem diante dos meus olhos. Aqui jaz uma embasbacada testemunha. Meninos, eu vi.

Com um discreto comando do band-leader, o mais fino jazz da mais fina tradição norte-americana começa a magnetizar a distinta platéia.

Virtuosismo, elegância, precisão, talento. As palavras são insuficientes para traduzir o intraduzível, o etéreo, o sensorial, o arrebatamento, o som infernal que 15 músicos é capaz de provocar.

O buddy Duke Ellington desce dos céus. Posso vê-lo espiando com uma discrição quase invisível recuado em algum ponto do palco.

Nascido Edward Kennedy Ellington no remoto ano de 1899, Mr. Ellington é considerado o maior compositor de jazz de todos os tempos. Consultem suas amarfanhadas enciclopédias. Deram-lhe o título informal de duque (“Duke”). Não foi à toa. Duque Ellington era sinônimo de elegância não apenas musical, mas pessoal. Era um gentleman do jazz. E erudito. Foi buscar inspiração em Shakespeare para alguns dos seus temas. Como Miles Davis, vinha de uma linhagem de negros bem nascidos, uma aberração num universo tradicionalmente povoado por músicos recrutados na mais abjeta pobreza americana.

Os 15 bravos intérpretes que dão o tom da festa esta noite honram o nome do mestre à perfeição. O primeiro número se esparrama por longos e eternos 9 minutos. Poderia ter durado 10, 20 minutos. Isso é jazz e suas jam sessions intermináveis.

O equilíbrio da orquestra é notável. É como se você estivesse diante de um time formado por 15 Pelés atuando em harmonia. Imbatível. Quando você pensa que viu o melhor da noite, acaba rendido pela rodada seguinte de mais um solo de trompete. Ou de trombone. Ou de clarinete. Ou de saxophone.

Lá do fundo do palco o sujeito vem vindo de mansinho, apruma o microfone, se empertiga um pouco, calibra o instrumento - e mágica. Mágico, seu fraseado flui com espantosa beleza. Agudos e agudíssimos são atingidos com a facilidade de quem assobia.

Uma confraria do jazz, eu vejo, vem se somar a Duke Ellington em algum canto recôndito do palco. Por lá estão Dizzy Gillespie, Chet Baker, Charlie Parker, Thelonius Monk.

Bonachão, o band-leader com voz de barítono de igreja gospel anuncia mais um número. Os solos se sucedem em performances apoteóticas. O público vem abaixo. É uma noite para ficar definitivamente marcada no DNA do teatro e da aldeia.

Compenetradíssima em seu baixo acústico, uma mulher com ar renascentista destoa no conjunto dos marmanjos. Jennifer - gravei seu nome. Mais low-profile impossível. A presença feminina no jazz é incomum, apesar das divas imortais. Por que Jennifer escolheu o jazz? E por que tocar um contrabaixo? Eu adoraria ter sondado suas razões, ter conversado com ela.

O clássico dos clássicos do duque ficou para o final. Não sem um aviso provocador do band-leader, que já havia anunciado minutos atrás: “Agora vocês irão ouvir música de verdade. Esqueçam tudo que ouviram até agora”.

E o grand finale veio com “Take the A-Train”. Foi o bastante para entrarmos num túnel do tempo, mesmerizados pela lembrança de uma América que vendia a imagem de baluarte da liberdade e do progresso, visão idílica que se perdeu mas que podemos nos permitir o luxo de alimentar numa noite ao som de Duke Ellington.

Se você não viu a apresentação da Duke Ellington Orchestra em Aracaju, pode degustar um pouco
neste vídeo da TV Balaio de Notícias.

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